quarta-feira, 14 de março de 2018

Ayn Rand e a Revolta de Atlas (Atlas Shrugged) - por Eduardo Chaves

Tirado da Sentimentagrafia
Retirado do site Ayn Rand Space

Este artigo é uma compilação de três matérias (dois artigos e uma transcrição) publicadas anteriormente aqui neste blog. Para tentar fazer unidade coerente de matérias escritas em diferentes momentos e com distintas finalidades, precisei revisar, adaptar e atualizar as matérias – que podem ser lidas em suas versões originais nas notas ao final de cada seção.

I. Introdução e Tema Geral (*)


A “Bíblia” do pensamento liberal clássico na segunda metade do Século 20 não foi um livro de economia ou mesmo de filosofia política: foi um romance de mais de mil páginas: Atlas Shrugged. Para quem não tem muita familiaridade com o Inglês, o título, no original, quer dizer “Atlas Deu de Ombros”, isto é, encolheu os ombros nos quais ele sustentava o mundo e deixou que o mundo se arrebentasse.

O livro foi escrito por Ayn Rand (1905-1981), romancista, filósofa e polemicista russo-americana, nascida na Rússia, em 1905, com o nome de Alyssa Zinovievna Rosenbaum. Ela emigrou para os Estados Unidos em 1926, quando tinha 21 anos. O livro, seu opus magnum, foi publicado originalmente nos Estados Unidos em 1957 (vai fazer 60 anos em 2017, o ano que vem). Por admissão dos próprios, o livro influenciou Ronald Reagan e Margareth Thatcher e, através deles, a história do Ocidente. Alan Greenspan, o todo-poderoso chefe do Federal Reserve Bank americano de 1987 a 2006, se incluía entre os discípulos de Ayn Rand.

Essa clássica defesa da liberdade do indivíduo, que na esfera econômica se conhece como capitalismo, ganhou em 2010 nova edição em Português, com título novo: A Revolta de Atlas, numa reedição da Editora Sextante, do Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto Millenium. O novo título segue o título da edição espanhola, La Rebelión de Atlas. A edição brasileira anterior, publicada em 1987, e há muito esgotada, tinha o título de Quem é John Galt? O título anterior corresponde a uma frase frequentemente usada no texto. Mas, para os que não conhecem ainda a obra, é meio obscuro. A tradução usada na presente edição é a mesma, mas ela foi revisada, corrigida e melhorada pela Sextante.

Com 1.231 páginas na presente edição brasileira, o livro tem enredo extremamente complexo, bem elaborado e atraente – e surpreendentemente atual, especialmente quando se leva em conta o fato que foi publicado há quase 60 anos (sua preparação, pesquisa e redação tendo custado mais de dez anos da vida de Ayn Rand). Mais detalhes sobre o enredo serão fornecidos adiante, nesta e na seção seguinte. É bom lembrar que em 1957, quando o livro foi publicado, estávamos, aqui no Brasil, no meio do governo Kubitscheck, na euforia da construção de Brasília e da aceleração do nosso desenvolvimento: cinquenta anos em cinco. Clima de “ninguém segura este país”, “este é um país que vai pra frente”, etc.

Os principais personagens da história também são bem definidos e muito interessantes. Eles são a Vice-Presidente Operacional da principal companhia ferroviária dos Estados Unidos, a única que é verdadeiramente transcontinental, fazendo viagem de Nova York a São Francisco; o proprietário da maior siderúrgica americana, que inventa um metal mais resistente, leve e barato do que o aço; o proprietário e líder mundial da indústria de extração, industrialização e comercialização de cobre, chileno de nascimento; e um inventor misterioso, sobre o qual há suspense nos primeiros dois terços do livro, deixando todo mundo, dentro e fora do livro, curioso. Vem daí o “Quem é John Galt?” Vários personagens secundários, todos eles muitíssimo interessantes, completam o quadro. O meu favorito, dentre os secundários, é Hugh Akston, professor de filosofia, dono de uma lanchonete, e sócio de uma fábrica de cigarros (cuja marca é simplesmente $, the dollar sign).

Nesta seção darei apenas uma breve descrição do tema escolhido por Rand para seu opus magnum, para que o leitor possa ter uma ideia da dimensão (breadth and depth) da obra.

Publicada em 1957, a história se passa nos Estados Unidos, numa época futura em que o país, seguindo o exemplo de países europeus e latino-americanos, caminha para o socialismo não-revolucionário, aquele socialismo supostamente democrático que transforma a sociedade através da legislação e da demagogia. Os países vão se transformando, um a um, especialmente na Europa, que lidera o processo, em “Repúblicas Populares”, que, gradualmente, têm sua economia totalmente regulada, manietada mesmo, e, assim, controlada e socializada. Os Estados Unidos parecem ainda ser capazes de resistir, mas, aparentemente, não por muito tempo. O clima é de guerra contra os empresários, em especial os industriais.

O livro descreve o que acontece quando aqueles que (como Atlas) sustentam o mundo nas costas resolvem fazer greve, assim sacudindo o mundo dos ombros e deixando que ele literalmente “vá para o brejo”. Na verdade, a guerra é contra todos os que têm habilidade e competência e valorizam no limite a sua independência, a sua autonomia, a sua liberdade — em relação ao governo e à sociedade.
Pela primeira vez na história, as pessoas de habilidade e competência resolvem fazer greve. O título original do livro era The Strike. Em Francês, continua a ser La Grève.

“Vamos ver o que acontece ao mundo quando quem faz greve contra quem” é frase (retirada do livro) que resume o tema da obra.

Entrando em greve, empresários e empreendedores americanos começam a desaparecer, abandonando suas empresas nas mãos de reguladores e controladores estatais. Grandes filósofos, cientistas e artistas também desaparecem, abandonando seus empreendimentos. O lado otimista da história é que o estado pode confiscar os produtos e as produções de empresas e outros empreendimentos, pode até se apropriar das próprias organizações, mas não consegue obrigar empresários e outros empreendedores a lhe arrendar suas mentes, sua inteligência, sua criatividade, sua habilidade, sua competência, seu trabalho… O estado, portanto, que fique com as empresas e os diversos empreendimentos, decidem seus proprietários na história. Mas eles não colocam mais suas mentes a serviço da sustentação de um mundo onde esse tipo de confisco pode acontecer. Na realidade, aquilo que eles deixam para o estado espoliador não passa da carcaça – a imagem é usada no livro – de empresas e empreendimentos cuja alma eles levaram consigo.

A história narra nos mínimos detalhes o caos que resulta dessa inusitada greve em que aqueles que normalmente são vítimas das greves, os empresários e empreendedores, retiram do mercado sua mente e seu trabalho, e, no processo, deixam o mundo sem bens, sem serviços, sem empregos.

Quando Atlas faz greve, o mundo literalmente para e, a seguir, desmorona (mais ou menos como aconteceu com o mundo comunista em 1989-1991, mais de trinta anos depois do livro – com uma pequena colaboração de Reagan e Thatcher, fãs do livro e de sua autora).

O livro coloca o foco na tentativa heroica da principal personagem, a Vice-Presidente da Taggart Transcontinental, de resistir à greve – mas, no final, ela consegue e (no bom sentido) sucumbe (adere à greve).

Ao final da história, quando as luzes do velho mundo se apagam, simbolizando a derrocada que lhe sobrevém quando Atlas deixa de sustenta-lo, a porta está aberta para a construção de um mundo novo: a greve termina e Atlas está pronto para reassumir seu lugar – agora com um exército consciente e bem preparado de aliados pronto para ajuda-lo.

[* Este primeiro capítulo é uma versão revista, levemente ampliada e atualizada, de um artigo que eu escrevi, a pedido do jornal, para a Folha de S. Paulo, seção Cifras & Letras, publicado em 9 de Outubro de 2010, por ocasião do lançamento da reedição de A Revolta de Atlas. O artigo da Folha foi reimpresso aqui neste blog em 09/10/2010, em https://liberal.space/2010/10/09/a-greve-dos-que-sustentam-o-mundo-nas-costas/, e novamente em 22/12/2014, em https://liberal.space/2014/12/22/excerto-de-a-revolta-de-atlas-obra-de-ayn-rand/.%5D

II. 60 Anos de Atlas Shrugged (**)

Atlas Shrugged, publicado quase 60 anos atrás, continua a ser o mais profundo romance de análise política do Século 20. Um romance engajado de uma escritora radicalmente liberal. Surpreendentemente, é também o mais popular.

Os críticos literários não gostaram — o que não é novidade. A esquerda — em especial a esquerda marxista — detestou. A esquerda mais light, social democrata, também não gostou, mas controlou um pouco o seu ódio.

O público leitor, entretanto, amou…

Um pouco antes da última virada do século a Random House, editora americana, resolveu elaborar duas listas dos 100 melhores livros de ficção do Século 20. Para a primeira, solicitou a opinião dos seus editores e críticos literários; para a outra, a opinião do público leitor. Não há surpresa no fato de que as duas listas quase não têm sobreposições. Atlas Shrugged ficou no primeiro lugar na lista dos leitores, seguido de The Fountainhead, também de Ayn Rand (publicado em 1943). As duas listas completas estão disponíveis no site da Random House, no endereço:


(A propósito, a lista dos editores e críticos tem Ulisses, de James Joyce, em primeiro lugar, e The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, em segundo.)

O fato de Atlas Shrugged haver ficado em primeiro lugar na lista dos leitores é surpreendente por várias razões. Uma delas é que o livro tem, em sua edição de capa dura, quase 1.200 páginas. Outra, que essas páginas contêm discussões filosóficas bastante densas acerca da natureza humana, do trabalho, do dinheiro, do sexo, da felicidade; da lógica, do conhecimento e da verdade; da ética e dos valores; da liberdade e dos direitos individuais; da política, do estado e do governo; da economia, da livre iniciativa, da propriedade privada. O livro é uma defesa intransigente do liberalismo, sem adjetivos, e do capitalismo, que é sua expressão na área econômica. A defesa do capitalismo tem como base não só o fato de que ele é o único sistema econômico capaz de realmente produzir riqueza e desenvolvimento (econômico, social e humano), mas também o único sistema econômico compatível com um regime político livre e, portanto, justificável moralmente. A defesa do capitalismo é, portanto, não só utilitária, mas também moral, no sentido mais objetivo do termo.

A natureza filosófica de Atlas Shrugged pode ser percebida na simples leitura do título de suas três partes:
  • “Não-Contradição” (“Non-Contradiction“),
  • “Ou Um Ou Outro” (“Either-Or“), e
  • “A é A” (“A is A“).
Esses três títulos se referem aos três princípios básicos da Lógica, a saber: o princípio da Não-Contradição (nenhum enunciado pode ser verdadeiro e falso), o princípio do Terceiro Excluído (um enunciado tem de ser ou verdadeiro ou falso, não há uma terceira possibilidade), e o princípio da identidade (se um enunciado é verdadeiro, então ele é sempre verdadeiro; se ele é falso, então ele é sempre falso).

É um tributo à habilidade linguística de Ayn Rand, para quem o Inglês não era a língua mãe (ela nasceu na Rússia em 1902 só veio para os Estados Unidos já adulta, em 1926), que ela tenha conseguido tal domínio dessa língua que seu livro é um considerado um clássico da literatura americana. Nas livrarias, é encontrado sempre entre os clássicos da literatura americana.

É um tributo à habilidade literária de Ayn Rand — que inclui as habilidades de construir um enredo fascinante, de definir personagens marcantes, de gerar e manter suspense, de levar o curso dos eventos a um climax — que Atlas Shrugged, apesar do tamanho e da complexidade da trama, tenha vendido vários milhões de cópias em suas várias edições (no original – não incluindo as traduções).

A história, narrada na terceira pessoa, se passa nos Estados Unidos (como se observou na seção anterior), em algum momento depois da guinada daquele país para a esquerda, algo que aconteceu durante o New Deal (década de 1930, começo da década de 1940). Provavelmente a data melhor para situar os eventos seja por volta do final dos anos finais do Século 20. Na história, os vários países europeus já se tornaram “Repúblicas Populares” (“People’s Republics“), isto é, já se tornaram socialistas, e os Estados Unidos caminham rapidamente na mesma direção. O governo americano, “em nome do povo”, interfere aberta a decididamente na economia, com leis e decretos (“diretivos”) que buscam “igualizar as oportunidades empresariais”, mas que tornam cada vez mais difícil para os empreendedores realmente competentes produzirem livremente, isto é, sem involuntariamente descumprirem ou intencionalmente burlarem alguma determinação governamental. A tentativa de “igualizar as oportunidades empresariais” é feita em nome do princípio marxiano de que os que têm habilidade e competência devem obrigatoriamente ajudar os que precisam: “de cada um conforme a sua habilidade, a cada um conforme a sua necessidade”.

A estratégia do governo regulamentador, como cinicamente revelada pelo Dr. Floyd Ferris, um dos diretores do Instituto Nacional de Ciência (State Science Institute – expressão que contém uma contradição de termos, segundo Rand), não é que todos os empresários cumpram essa miríade de normas e regulamentos. A intenção é que todos os empresários se tornem, inevitavelmente, criminosos, por ser impossível produzir sem quebrar alguma norma ou regulamento governamental. Como o poder governamental é, acima de tudo, o poder de punir os criminosos, o governo, assim, adquire um enorme poder de barganha, vendendo favores através de esquemas cada vez mais corruptos.

(Apesar da distância no tempo e no espaço, qualquer semelhança com o Brasil de hoje é pura coincidência…)

O governo não tem nenhum poder de barganha com o inocente: sua força advém do fato de que ele pode punir — aqueles que quebram suas leis. Se as leis forem mínimas e racionais, pouca gente as descumpre. Se os impostos forem baixos, pouca gente deixa de paga-los. Se existirem, porém, leis e impostos em grande quantidade e formarem um emaranhado indecifrável de normas e regulamentos de interpretação sempre obscura e questionável, todo mundo se torna facilmente criminoso e, portanto, passível de punição por parte do governo. Como é virtualmente impossível punir todo mundo, o governo seleciona aqueles que ele, sob a ameaça de punição, quer “enquadrar”. Faz chantagem com eles, é a expressão correta.

Nesse quadro, começa a aparecer um desenvolvimento interessante e curioso, que fornece o elemento central do enredo do romance. Quando a pressão se torna perto de insuportável para um grande industrial, ele simplesmente desaparece sem deixar vestígio – tira o time de campo. Às vezes ele deliberadamente destroi sua indústria antes de partir, como o fez Ellis Wyatt, o magnata do petróleo. Outras vezes ele a deixa virtualmente intacta (como o faz Hank Rearden, o dono da siderúrgica), na certeza de que, sem ele, ela não vai durar muito. Gradativamente vai se mostrando que esses desaparecimentos não são atos de covardia individuais, sem coordenação, mas, sim, parte de uma greve muito bem organizada dos empresários realmente competentes e produtivos, dos quais depende a economia nacional — greve inicialmente pequena, mas que ganha momento e começa a preocupar não só os empresários que ainda não aderiram, mas o próprio governo que, pouco a pouco, percebe que a economia está entrando em colapso.

O objetivo da greve é mostrar ao mundo quem sai realmente perdendo quando quem entra em greve… As greves tradicionais, feitas pelos trabalhadores contra os empresários (especialmente do setor industrial), tentam mostrar que os trabalhadores são os reais produtores, a fonte real da riqueza dos empresários industriais, que os exploram, retendo para si a “parte do leão” do preço de venda dos produtos (a “mais valia”). A greve dos empresários industriais procura mostrar que eles são os reais geradores de riquezas, fazendo dinheiro com sua capacidade criativa (suas idéias inovadoras) e produtiva (sua habilidade de transformar essas idéias em realidade, isto é, em produtos e serviços). Sem eles a maior parte dos trabalhadores não teria trabalho e literalmente morreria de fome (como frequentemente acontecia antes da era liberal-capitalista e aconteceu nos regimes comunistas). Os empresários industriais e demais empreendedores são, portanto, o Atlas que segura o mundo nos ombros. Ao entrar em greve, eles estão sacudindo os ombros e deixando o mundo literalmente ir para o brejo.

Resumindo e repetindo, Atlas Shrugged foi publicado pela Random House nos Estados Unidos. O livro foi publicado em Português, no Brasil, em 1987, trinta anos depois de sua publicação nos Estados Unidos, sob o título Quem é John Galt? A tradução é de Paulo Henriques Britto e a publicação foi feita pela Editora Expressão e Cultura, do Rio de Janeiro. Tenho duas cópias dessa tradução, uma em um volume, dentro de uma caixinha de papelão, e outra em dois volumes. Esgotada essa edição brasileira, uma nova edição está sendo preparada pela Editora Sextante, com uma revisão do texto.

[** Este segundo capítulo é uma versão revista e atualizada de um artigo que publiquei neste blog em 05/10/2007, cinco dias antes do quinquagésimo aniversário da publicação do livro em Inglês. Seu endereço é: https://liberal.space/2007/10/05/50-anos-de-atlas-shrugged/%5D

III. Trecho de A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged) (***)

O trecho abaixo é longo. É parte de A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged). Na minha opinião, uma das partes mais importantes, porque revela por que a mentalidade socialista não funciona: ao tentar implantar um “novo homem”, isto é, uma natureza humana ideal, essa mentalidade vai contra a natureza humana real.

Transcrevo segundo o texto da tradução brasileira de Paulo Henriques Britto (com pequenas modificações minhas), originalmente publicada sob o título Quem é John Galt? e, atualmente, sob o título A Revolta de Atlas. A primeira edição foi publicada em um volume pela Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1987, e a segunda, em três volumes, pela Editora Sextante, São Paulo, 2010. O texto é basicamente o mesmo nas duas edições, com pequenas correções e melhorias.

A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, do porquê da falência da fábrica (Twentieth-Century Motors / Motores Século Vinte) em que ele trabalhava. Trata-se, naturalmente, de uma obra de ficção.

Como disse, o texto é o da tradução brasileira, com pequenas modificações minhas, e foi retirado das pp. 510-515 da primeira edição e das pp. 343-353 do segundo volume da segunda edição. Forneço a indicação do número das páginas da segunda edição.

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[p.343]

— Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde trabalhei durante 20 anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensavam que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade. [. . .]

— Aprovamos o tal plano numa grande assembleia. Nós éramos 6 mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como é que o plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro [p.344] sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque, do jeito que os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinhas. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida toda dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso era o certo e o justo? [. . .]

— Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembleia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.

A senhora sabe, nós que trabalhamos lá na Século XX durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .

A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque em que há um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no fim a senhora está despejando baldes 40 horas por semana, depois 48, depois 56, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . .

De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade. [. . .]

— Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa 10 horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho a capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? Pois é. . . .

Mas então decidiram que ninguém tinha o direito de julgar suas próprias [p.345] capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembleia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nesses eventos? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo — mendigos esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à ‘família’, e ela não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua ‘necessidade’, e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a ‘família’ lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.

Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por 6 mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor? [. . .]

— Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembleia. A produção da fábrica tinha caído 40 por cento naquele primeiro semestre, e então concluiu-se que alguém não tinha usado toda a sua ‘capacidade’. Quem? Como descobrir? A ‘família’ também decidia isso no voto. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os seis meses seguintes. E sem ganhar nada a mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.

Será que preciso explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a ‘família’ não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica — ou por desleixo, porque não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência — quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Por isso, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.

Tinha um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a ‘família’, não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. ‘Era tudo pelo ideal’, dizia ele. Mas, quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma ideia [p.346] brilhante.

A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é? [. . .]

Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.

Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que nunca se termina de pagar.

E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada ‘ajuda de custo para moradia e alimentação’, e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte — a senhora podia ou não ganhar uma ‘ajuda de custo para vestimentas’, dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E, se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.

Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a ‘família’ não quis dar ao homem uma ‘ajuda de custo’ para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade — e, para isso, era preciso primeiro pagar o ensino médio dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo. Brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.

Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antes, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma ‘ajuda de custo’ para comprar discos — disseram que aquilo era ‘luxo pessoal’. Mas, naquela mesma assembleia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes — isto era uma ‘necessidade médica’, porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush, então lhe deu um soco que lhe quebrou todos os dentes da menina. Todos. [. . .]

— A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns [p.347] mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas, se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia ‘ajuda de custo de entretenimento’ para ninguém. O lazer foi a primeira coisa que cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa ‘ajuda de custo de fumo’ foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês — e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.

Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores — porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da ‘família’. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma ‘ajuda de custo para bebês’ — ou isso ou arranjar uma doença séria. [. . .]

— Bom, não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia agir certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para pagar aquela garfada, sabendo que o alimento que comia não era seu por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, de ser um pato, e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da ‘família’. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia se casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.

Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma ‘ajuda de custo de doença’, inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas — pois não era a ‘família’ que estava pagando? Descobriram muito mais ‘necessidades’ do que os outros, desenvolvendo um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.

Deus me livre! [. . .]

— A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia quem a observava — pelo fato de a observar. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais sofria; quanto mais a violava, mais lucrava. [p.348]

A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, nos orgulhávamos do nosso trabalho, e éramos funcionários da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida. A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro — e era isso que chamavam de ideia moral!

Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar — que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o restante da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos ao trabalho de seguir em frente? [. . .]

— Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades — só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral — um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças — burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.

Amor fraternal? Foi então que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa de outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na casa — tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossas renúncias, nossa fome.

Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre suas necessidades, para cortar sua ‘ajuda de custo’ na assembleia seguinte. Começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado às escondidas um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguém saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando a namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse, não queríamos mais dependentes para alimentar.

Antes, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro. Nessa época, quando nascia uma criança, [p.349] ficávamos semanas sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram o que os gafanhotos são para os fazendeiros: uma praga.

Antes, ajudávamos quem tinha doente na família. Depois . . . [. . .]

— Bom, vou contar apenas um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que trabalhava conosco havia quinze anos, uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser internada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser levada para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Não se comentava nada sobre o assunto. A única coisa que sei — e disso nunca vou me esquecer — é que eu, também, quando dei por mim, estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Eram essas a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano. [. . .] [p.351]

— Bem, quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio ‘de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade’. Esse era o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo podiam cometer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direito quando bastavam cinco minutos de reflexão para verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa ideia. Agora sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém comete um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa ideia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.

E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembleia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos ofereciam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência dos que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que também iam ganhar aquilo que não mereciam. Ele esquecia os inferiores que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso. E então, quanto mais a ideia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.

Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Havíamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram aguentar muito [p.352] tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo. [. . .]

— Antigamente, ninguém pedia demissão da Século XX, e a gente não conseguia se convencer de que a companhia não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria — aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com as quais negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no fim só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a quantidade de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.

Antes, dizia-se que a marca da Século XX era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como enriquecera seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor, nem se ele fosse dado, se ostentasse o selo da Século XX.

E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm nem mesmo a intenção de pagar. [. . .]

— No entanto, Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.

Àquela altura, qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que adiantaria para os passageiros de um avião, quando as turbinas pifassem em pleno voo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?

Pois essa era a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era [p.353] aplicada numa única cidadezinha onde todos se conheciam, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? Pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar — e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar — sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar, sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar, tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai saber quais são, cuja capacidade, preguiça, desleixo e desonestidade são coisas de que a senhora jamais vai ter ciência nem terá o direito de questionar — enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESSA lei moral que se deve aceitar? ISSO é um ideal moral? [. . .]

— Olhe, nós tentamos — e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembleia à última, e acabou da única maneira que podia acabar: com a falência da companhia. Na nossa última assembleia, foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o restante do país não aceitara que uma única comunidade poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.

Um rapaz — o mesmo que fora punido por dar uma boa ideia no primeiro ano – se levantou, enquanto todos os outros permaneciam calados, e se dirigiu até Ivy Starnes, que estava no tablado. Sem dizer nada, ele cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século XX.

[*** Este texto foi originalmente publicado em 1998, em meu site Ayn Rand, no endereço http://aynrand.com.br, que não existe mais. (Atualmente esse endereço remete a este blog, Ayn Rand Space). Depois o texto foi transcrito em meu blog Liberal Space em 17/05/2005, no endereço https://liberal.space/2005/05/17/trecho-de-atlas-shrugged-quem-e-john-galt/.
Ele foi ainda republicado, com pequenas correções e revisões, para ficar fiel à segunda edição da obra, no mesmo blog em 22/12/2014 no endereço https://liberal.space/2014/12/22/excerto-de-a-revolta-de-atlas-obra-de-ayn-rand/.]

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O presente artigo, em três seções, foi composto de material pré-existente, mas revisto, já publicado originalmente no meu blog Liberal Space. Nessa forma, foi publicado em Liberal Space em 01/06/2016, no endereço https://liberal.space/2016/06/01/ayn-rand-e-a-revolta-de-atlas-atlas-shrugged/. Foi republicado aqui neste blog, Ayn Rand Space, em 02/06/2016.

EDUARDO CHAVES é escritor, palestrante e consultor (empresas, ONGs, escolas), tendo sido professor universitário por 45 anos (função da qual está hoje parcialmente aposentado). Desses 45 anos, mais de 70% foram passados como professor de Filosofia da Educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em Campinas, onde por 26 anos foi Professor Titular dessa matéria no Departamento de Filosofia e História da Educação (DEFHE) da Faculdade de Educação (FE).