quarta-feira, 28 de junho de 2017

"Eu nada teria do que me lamentar" - Submissão - Michel Houellebecq


Durante todos os anos de minha triste juventude, Huysmans foi para mim um companheiro, um amigo fiel; nunca tive dúvida, nunca fui tentado a abandonar, nem a me orientar para outro tema; e então, numa tarde de junho de 2007, depois de longamente esperar, depois de tanto tergiversar até um pouco mais que o admissível, defendi perante a banca da universidade Paris iv-Sorbonne minha tese de doutorado: Joris-Karl Huysmans, ou a saída do túnel. Já na manhã seguinte (ou talvez já na própria noite, não posso garantir, pois a noite de minha defesa foi solitária e muito alcoolizada), entendi que uma parte de minha vida acabava de terminar, e era provavelmente a melhor. - Michel Houellbecq

Submissão: substantivo feminino. Significado? Condição em que se é obrigado a obedecer, se sujeitar: subordinação, como explica Robert Rediger, um dos poderosos do novo regime político instaurado pelo carismático Mohammed Ben Abbes, presidente eleito da França em 2022.

Evocando a origem etimológica da palavra árabe Islã - cuja transliteração correta a partir do idioma árabe é Islam - que significa literalmente submissão, Michel Houellebecq faz o esforço de avisar que o mundo pós-Segunda Guerra Mundial acabou (e sua paz também).

O livro é uma fotografia dos tempos atuais. Aqueles que tem os olhos abertos para a história recente, não apenas europeia, mas a de todo o mundo, tem a percepção que o livro é a chave para a sua compreensão.

O islamismo atormenta a Europa desde a Idade Média: seja representado por árabes, seja representado por turco-otomanos. Já o antissemitismo é derivado da mesma época: basta ler Shakespeare, Dante, Camões, Gil Vicente para perceber como os judeus são retratados. O terrorismo islamita vem mudando a geopolítica europeia e seu cotidiano - só observar o Brexit e os atentados na própria Inglaterra, enquanto assentamentos israelenses na Faixa de Gaza são condenados pela Organização das Nações Unidas.

No Brasil, há duas grandes marcas na história nacional de ambos os povos (o israelense e o islâmico). Pernambuco teve grande imigração de judeus durante o período em que o Brasil sofreu a Invasão Holandesa no Brasil (1637-1644), fundando a Sinagoga Kahal Zur Israel (a primeira das Américas). Já do lado islâmico aconteceu a Revolta dos Malês (24 e 25 de janeiro de 1835), uma mobilização de escravos de origem islâmica que tentou dominar Salvador e foi repelida pelo exército. 

Com um jogo de palavras progressivamente jocoso, Houellebecq nos apresenta François, um professor solteirão de literatura na Universidade Paris III-Sorbonne, apolítico, e que vê sua universidade se tornar uma instituição islâmica financiada por bilionários sauditas, que não tem mais espaço para um agnóstico como ele.

As mulheres saem do mercado de trabalho, os judeus são caçados ou expulsos - a última namorada de François, uma moça judia chamada Myriam, foge para Israel para escapar do anti-semitismo crescente.

Da noite para o dia, a França sem perceber mudou de identidade.

Os meios de comunicação quase não falam dos confrontos armados de islâmicos e nacionalistas, pois se tornou banal - denunciando as Cassandras - fazendo referência a princesa de Troia, que fazia previsões catastróficas e ninguém acreditava - que anunciavam uma guerra civil entre os imigrantes muçulmanos e as populações autóctones da Europa ocidentalEssa cegueira, o personagem lembra, não foi inédita: foi a mesma que abateu nos intelectuais, políticos e jornalistas dos anos 30, que estavam convencidos de que Hitler acabaria por recobrar a razão.

É difícil separar o livro de atentados terroristas. No dia 7 de janeiro de 2015, dois homens armados com fuzis Kalashnikov invadiram a redação do semanário satírico Charlie Hebdo e dispararam contra seus colaboradores. Entre os mortos estava Bernard Maris, um conhecido economista de esquerda e amigo pessoal de Houellebecq, que cancelou imediatamente a turnê de promoção do livro, lançado no mesmo dia dos tiroteios.

Hoje, a França possui 10% de sua população seguidora do Islã. Em 2022, no futuro imaginado por Houellebecq, esse número se torna expressivamente maior, especialmente com a ascensão política do partido Fraternidade Muçulmana que muda toda a grade curricular da educação nacional após fazer concessões aos partidos aliados.

O personagem mostra uma França ajoelhada e sua vida como Huysmans reverso - enquanto Huysmans, na juventude, se envolveu em coisas macabras e depois de uma crise espiritual, se converteu ao catolicismo, François se converte ao islã. A alma da nação e a do indivíduo caem juntas e cômodas, consumando o fato: nada teriam que lamentar.

ESSE POST NÃO SERIA POSSÍVEL SEM A COLABORAÇÃO DE SIDNEI FERREIRA.