domingo, 15 de outubro de 2017

A contemporaneidade assustadora - 1984 (George Orwell) por Giordano Mochel Netto

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Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas. Winston Smith, queixo enfiado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele. - George Orwell
George Orwell (na verdade Eric Blair) terminou 1984 em 1948. Não é uma coincidência, os números finais foram invertidos para indicar que suas previsões seriam possíveis em um futuro breve. Chegou o ano de 1984 e revendo-se antigas publicações jornalísticas da época observava-se frequentes menosprezos, até zombarias, perante os "erros proféticos" do autor. Mas, apesar do tom fictício e exagerado usado por Orwell na obra, suas previsões estavam muito longe de erradas, mesmo em 1984.

Analisando-se o contexto mundial da década de 80, imerso em uma tensa guerra fria, é possível verificar o quanto o controle da mídia, enfaticamente citado no livro, foi capaz mesmo sem o desenvolvimento tecnológico atual. No início dos anos 80 os EUA conduziram o apoio ao Iraque na guerra contra o Irã mascarado pelo jornalismo mundial que apenas retratava o conflito regional como uma guerra entre correntes religiosas muçulmanas quando na verdade se tratava de uma ação de controle político e econômico proporcionado pela OTAN. Não à toa o barril de pólvora islâmico alcançou proporções incontroláveis nos anos posteriores com consequência direta para os próprios EUA.

Essa mesma mídia, em 1984, criticava o livro por ter dado proporções mundiais ao que acreditava se tratar puramente do regime exercido pelo bloco socialista. Mas não foi isso que Orwell quis expressar. Apesar da reprovação velada à guinada ao totalitarismo dada por Stalin, o livro é visionário em identificar o que aconteceria de forma global, principalmente no que se refere à padronização da linguagem, ou como é definido na obra, novilíngua e no controle da individualidade. A redefinição constante de padrões pela mídia moldou toda a opinião Global nos últimos 50 anos e cada vez mais avança no controle da uniformização do conhecimento. Já o controle da individualidade é presente em toda a sociedade, inclusive na infância.

Da década de 80 pra cá, 1984 tem se tornado mais que uma obra visionária. Metaforicamente, se tornou a referência na ordem mundial. As coincidências são espantosas.

No livro, o governo fictício da Oceânia (traduzido assim mesmo, com circunflexo), através de distorções semânticas, procura confundir a interpretação da sociedade. "Guerra é paz", "Liberdade é escravidão" e "Ignorância é força" são alguns dos termos. Hoje isso se sofisticou. Além da confusão tradicional de termos proporcionado pela mídia há também uma massificação de informações que várias fontes que não só confundem como criam novas concepções de correntes políticas, econômicas e sociais sem qualquer embasamento teórico ou científico. Um caso clássico observado hoje é o Terraplanismo, cada vez com mais adeptos.

Na obra um ministério inteiro é designado para a reescrever fatos ocorridos de forma a adequar a história aos interesses do governo. Hoje isso acontece frequentemente, basta ver a vasta quantidade de páginas na internet que tentam reescrever o golpe militar brasileiro como governo legítimo e os sites mundiais que buscam ressaltar algumas características nazistas como boas e até necessárias. Há também as distorções de ordem lógica como, por exemplo, as linhas pseudo-filosóficas que pretendem explicar que o nazismo é uma doutrina de esquerda. Eventualmente isso se torna oficial, dependendo do interesse de cada país.

Júlia é a coprotagonista que faz o par romântico com Winston. Ela disfarça seu ódio ao sistema participando de movimentos políticos do partido, um deles é a Liga Juvenil Antissexo. No livro a ideia é tolher os relacionamentos através da repressão a liberdade sexual. É o que vemos hoje de forma global, uma grande escalada do conservadorismo e do reacionarismo. A desculpa clara é a busca pelos bons costumes, mas por trás se esconde um falso moralismo com o obscuro intuito de manter o controle social através do estreitamento de diversidade, algo muito próximo ao fascismo.

Por fim, temos na obra a presença das teletelas que nunca se desligam e vigiam cada cidadão, um ativo do governo moldado pela necessidade dos órgãos de poder. Nada no livro de Orwell foi mais profético e acertado que a presença do Big Brother. Como sabemos, todos os smartfones do mundo não são apenas rastreáveis e gravados (todo o teor, sem exceção) mas também contém o histórico geográfico do itinerário do usuário, ou seja, é sabido pelos governos (ou pelo “governo”, se preferirem) por onde cada cidadão dono do celular andou nos últimos anos. Outra clara demonstração de como o Big Brother é usado e como a sociedade é facilmente manipulada foi o lançamento em 2016 do jogo Pokemon Go. O jogo tinha um alto apelo comercial e baixa premissa de viabilidade a longo prazo, mas serviu para que cerca de 70% da população mundial instalasse em seus smartfones apenas por curiosidade e filmasse o interior das suas residências, gerando mais um gigantesco banco de informação para os detentores do poder.

O mais surpreendente é que não há, a curto prazo, uma forma de escapar de tal destino. A constatação causa arrepios porque prova que Orwell estava absolutamente certo, inclusive na triste e inevitável conclusão do livro.

GIORDANO MOCHEL NETTO é bacharel em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e especialista em Contabilidade Pública e em Transporte Público. Atualmente, divide seu tempo entre a Auditoria Estadual de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, ocupando o cargo de superintendente de Tecnologia da Informação, e como advogado pela Universidade Estácio de Sá (Unesa). Estreia com a ficção científica Condão.